Uma Morte.

Emanuelle Anastassopoulos
6 min readDec 6, 2021

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Houve um tempo no qual Ceci se sentia pesada. Sobretudo quando era ainda moça, vergava com o peso do mundo. Não lhe atingia a compreensão de sua existência neste Planeta. Os caminhos tortuosos que se deve traçar para atingir a sustentação de seu desejo e a ambiguidade moral atrelada a isso, esfaqueavam o peito da menina. A dor que sentia lhe transbordava os olhos infantis e lhe escurecia a alma. Queria voltar. Para onde, não sabia exatamente, mas queria voltar. Algo dentro dela se contorcia ao encarar este mundo, e admitia sua covardia com orgulho; queria voltar. Seria talvez às águas uterinas que a abrigaram e deram vida? Ou antes disso, Ceci queria voltar para alguma dimensão anterior, alguma suposição esperançosa de um mundo melhor. Mas quando ouvia as buzinas nervosas, as vozes pedindo esmolas, os barulhos dos motores poluindo o ar; pesava-lhe a tristeza. Não encontrava de forma alguma o caminho para o jardim das delícias. Aliás, não entendia a obstinação humana na busca de amor e de sexo. Nela, essas duas esferas de davam por um único canal; sua mente. “Como posso querer amar apenas um ser humano, se meu amor se estende pelo mundo todo, e amo os pássaros tanto quanto os mendigos. Amo uma criança solitária que agora contempla a neve de Moscou. Amo ao repousar minha observação e é este amor que faz meu pensamento se impulsionar eticamente a tudo que por ele passa. Pois não apenas penso e sei, mas imagino condições de amor ao passante do meu pensar.” Sentia prazer olhando as ondas e fotografando em memória o vento cortante do litoral. Amava o frescor que emanava de seu álbum mental de fotografias. Havia uma em particular, da qual se afeiçoava mais: o céu brando do inverno, a luz baixa da cor do mel de flor de laranjeira, cintilando até metade das construções antigas do Centro do Rio de Janeiro. Era algo como o não ter; não brilhava a tal ponto de quase derreter o cimento da cidade, mas refrescavam as rachaduras do tempo e as atribuía um ângulo de novidade aos olhos amorosos dela. Não olhava apenas, mas diluía a cor da tarde por entre as ruas antigas e de repente lhes pareciam ricas de detalhes e novas, paradoxalmente novas, visto que esta novidade vinha de anos luz daqui. “Amo assim e assim penso que o amor deve ser; criativo e infinito” Veja bem, não se assustava com a morte. Seu amor tinha gosto de morte e amava as criaturas sem pulso. Nesta época em questão, Ceci pensava que para atingir a eternidade, de fato o amor deve ser gélido como um cadáver, pois é este o fim de todas as coisas, então seria este também o fim do amor. Aqui, amava como a velocidade da luz; humanamente inconcebível. Para se amar verdadeiramente, seria preciso amar além da morte e além do querer, posto que se perde tudo, menos a certeza da escuridão. “Seja breu o meu amor! Só assim meu desejo será eterno e imenso em extensão.” Não é que não gostasse do calor vivo que emana do desejo ou que não sentisse prazer, é que única e simplesmente pensar lhe era tão prazeroso quanto e, certamente, menos conturbado. Mas o pensamento, por ser o sangue fora da veia, é frio e rápido. E nestas condições, torna-se o oposto do calor do corpo vivo. “Como posso viver nessa frieza, ignorando a mim mesma ou pelo menos a parte considerável do que constitui uma pessoa? Como vive a poetisa sem se apaixonar?”

Com a maturação dos velozes anos juvenis, certo dia acordou em contradição. Percebeu-se por trás de si. E com esta percepção, também o amor tornou-se duplo. Já não se alimentava tanto do prato gelado de si. Sua pele, de repente, podia ser estendida como um véu pelos montes daqui. Suas unhas nasciam dos cascos de árvore. Seus dentes, incrivelmente, pareciam-se com os pequenos cílios das plantas delicadas. E notou que seus suspiros muito se assemelhavam com a brisa cortante da primeira hora do dia. A fantasia que tinha de si, se estendia ao próprio mundo diante dela. E a partir de então, viu o amor como uma espécie de contradição entre gelo e fogo. A morte, cálida e bela, lhe pareceu um ambiente não tão inevitável. O amor tornou-se uma espécie de ato tradutório; um instrumento de comunicação entre a Terra, que a abrigava, e os Astros , que a observavam. Evidente que este fato não diminuiu a extensão quilométrica do seu afeto. Mas... digamos sussurrando: o fez real. O belo receptáculo que abrigava em si ansiava por aterrar-se e jorrava líquidos coloridos como os campos de flores na primavera, que seguiam as trilhas das colinas e, obedientes, desaguavam no mar. Sempre ansiando por espaço. O corpo queria espaço. Para além dele próprio, o corpo queria espaço. E provocaria grandes esforços para que isso fosse recuperado. O corpo quer continuar sendo corpo, pois seu corpo é também parte da carne desta terra. E esse ser encantado, escondido por trás dos pronomes, anseia por expandir-se infinitamente. Quer ser luz, brilhante luz marrom. Quer sentir-se novamente recebido por si mesmo. E neste receber, o prazer. A cada fagulha de vida que se acende; o prazer. Quis sentir o prazer de ser extensa e derramada.

Estavam a céu aberto quando a viu pela primeira vez. A observou de longe, e hoje, pôde observar-se observando-a. Reparou na estatura média e no sorriso grande, de forma que ambos se expandiram a seus olhos. Se aproximou com curiosidade e sempre continuou próxima pelo mesmo motivo. Apesar de ter certeza de nunca a ter visto antes, a sentia em lembrança, assim como quando se vê uma fotografia de si, recém-nascido, e uma estranha sensação de memória inalcançável surge. Ofereceu sua amizade, mas sutilmente. De forma despretensiosa foi circundando-a como uma caçadora, até que jogou a isca e ela mordeu. Foi o único e verdadeiro amor de sua vida. Sem saber que seria esse seu significado para ela, deu-se por completo sem esperar afagos nem gracejos como se espera de uma amante. Deu-se apenas. E se hoje consegue dizer que foi só com ela que sentiu amor, é porque já há algum tempo lhe sussurraram isso em uma das muitas noites geladas, no alto de algum morro carioca. Custou perceber que amava pois o amor verdadeiro surge sem demanda, como num ato de descuido da vista. Foi com a velocidade das pálpebras que o amor surgiu. Quando viu, já conseguia se lembrar nitidamente do som da língua dela se dobrando na pronúncia inteira das vogais. O sentimento se arrastou por vários anos, e na cabeça dela existiam as pessoas pelas quais tinha interesse sexual, e existia o ponto fixo do seu amor; ela. Em certo momento pensou que era uma doença amar assim, quis se livrar e adentrar nas causas do sentimento, mas não teve sucesso. Aceitou por fim que o amor, por si mesmo, é uma grande doença da alma. Quando amamos agimos como enfermos; é a comida na boca, é o acalanto do cobertor, são os favor desnecessários e os mimos. O amor em sua expressão leve é a contemplação. O amor encarnado é o desejo, a falta constante e insuportável.

Veja bem, foi cambaleando que seu corpo conseguiu sustentar o peso de sua cabeça apaixonada. Custaram-lhe noites sem dormir e lágrimas açucaradas a compreensão de que ela não podia reter o tempo na figura dela. É uma tendência propriamente humana querer parar o tempo. É dessa maneira que se tem a mais vaga e mesmo assim reconfortante noção de quem se é frente às possibilidades da vida. Para Ceci aceitar sua pequenez frente ao tempo, precisou romper as bordas de si. Notou então que seu amor cristalizava a imagem de sua amada e através desse sentimento ela cristalizava também a sua própria imagem. Ceci não era nada, nunca fora algo além da capacidade de sentir e conhecer sensorialmente o mundo. Ceci não tinha forma senão o formato dos seus sentimentos. E sentir esse amor por ela dava-lhe uma casa para que seu espírito existisse mais confortavelmente. Apesar disso, os espíritos muito grandes precisam se espalhar para além de corpos. Esse movimento de se dar em dimensões maiores do que a humana fazia com que Ceci sentisse algo novo até então,; o medo de morrer. Era o medo que fazia com que ela acabasse voltando ao sentimento primeiro do amor humano que sentia por ela. O temor fazia com que ela tentasse reter a si e a ela, para que então continuasse tendo raízes conhecidas e não adentrasse a escuridão da morte transformadora. Mas a morte, como todos sabem, é o berço mais doce que a existência proporciona.

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