Sobre Diabetes
Certo dia estava com pressa. Aliás, a pressa era das linhas de trem. Tudo cinza, tudo vermelho. Borrões e fraturas de tempo se aglomeravam nos trilhos do metrô. O barulho dos metais escondia o barulho da minha mente e me fazia andar mais rápido, por medo dos sons das minhocas gigantes cavando raivosas o que sobrou da terra.
Saltei há dez minutos na Tietê, mas já parecem horas. Não posso deixar ninguém saber que não sou daqui; andar com assertividade. Ora, que tontinha, está escrito nessa cara redonda que é caipira! Na viela que sai da estação, saltei uma poça de esgoto e reparei nos muitos comércios com a porta escancarada e sujeitos sujos com máscaras mal ajustadas. De novo o trem passando, dessa vez já um tanto distante, o que intensificava minha aflição, pois o chão no qual pisava continuava tremendo mesmo após sua passagem. Tento não demonstrar que me assusto com o barulho do metal; ando mais rápido, olhos sempre pro asfalto. Nunca considerei terra como sujeira, mas esse chão há muito deixara de ser natureza. Ratos, bosta, fuligem.
-Mocinha! Mocinha!
Ao olhar pro lado, vejo uma senhora travesti falando tão rápido comigo que não consigo ter tempo de sentir nada. São sons que de alguma forma fazem sentido aos meus ouvidos, não pelo significado das palavras, mas pelo ritmo.
-Eu tenho diabetes estou morando aqui na rodoviária já tem dois meses. Olha aqui as facadas que já me deram por ser bicha. Tá doendo moça e eu tô com fome.
Olhos nos olhos dela. Lá dentro há outro tempo. Vestia rosa e os cabelos sebosos ainda assim soltavam um cheiro bom, conforme ela se movia. A elegância da figura não condizia com sua situação.
-Claro, claro moça. Eu ajudo.
-Compra algo pra eu comer, mocinha. Aqui, ó. Nessa vendinha.
Foi entrando e eu a segui. Ela se entranhava pelas fileirinhas do lugar como quem tem pressa e experiência. Primeiro, pegou tijolo com cimento; pão, margarina e suco.
-Esse chocolate aqui mocinha, eu vou levar também, tá bom?
A olhei com as sobrancelhas franzidas e disse:
-Moça vai ficar caro, eu não tenho tanto dinheiro.
O som da frase se misturou ao barulho do escapamento de uma moto que passava na hora, e senti como se algo a houvesse dito por mim.
Acostumada, me respondeu que não tinha problema.
Quando estava próxima a ela, a ponto de pagar pelas compras, sinto um perfume doce exalando de seu corpo maltratado pela fome. Cheiro leve e acolhedor, que observei pairar em tons de violeta degradê pelo estabelecimento, naquele compasso dançante que somente as fumaças possuem, tentando alcançar o céu, tapado pelo teto. Meu pensamento, na mesma velocidade da cidade, contrariou o fluxo dos trens. Coloquei o chocolate no balcão.
-Açúcar deve ser bem necessário por aqui.