Revolução

2020 foi um ano difícil para as crianças. Ficaram sem a natureza controversa da escola; que oferece aos pequenos a vivência coletiva ao passo que domestica. Privadas de sua principal fonte de experiências, afundaram-se em telas. O sofrimento infantil é quase sempre imperceptível, pois os serzinhos não possuem a destreza de levar a luz da consciência ao que sentem. Os adultos, é claro, também não possuem tal capacidade. E mesmo assim, para eles existem mais possibilidades de expressar as dores sem a repressão externa. A essa altura, já não se distingue dentro e fora.
Minha infância foi a mais solitária. Foram tantas escolas pelas quais passei… de nenhuma gostei, é verdade. Filha única, minha relação com as longas viagens foi uma imposição desde cedo. Quando criança, o que mais gostava era de imaginar cenários e situações. Ia dormir mais cedo para que pudesse criar debaixo das cobertas; época antigas, animais falantes, amores, países. A fantasia do cotidiano me acompanha desde então. Não que tenha há muito sido retirada da infância; vez ou outra ainda a encontro falando por mim. Isolada na casa dos meus avós, ela fez-se mais presente. A convivência familiar me lembrava todos os dias de quem inevitavelmente fui; como a semente que permanece na fruta.
Marô e Madu, em nossa família, são as crianças da vez. Ah, o tempo… hoje já me chamam de adulta, vejam só! Ontem era eu quem ansiava pelos anos, com a esperança de que me trouxessem o fim dos beliscões e das ordens. Tornei-me jovem demais para a sabedoria e velha demais para a escola. Mas admito friamente em palavra; todos ao meu redor são experiências sociais para minhas perturbações intelectuais. E foi assim que vendo a luz branca cegar aqueles olhinhos infantis, perguntei se queriam ouvir uma história, mesmo não tendo nenhuma em mente. Disse assim, num impulso, apenas para disputá-las com a tela.
-Sim, Nunu. — me responderam sem animação.
E agora? Na pressão de inventar algo, resolvi então perguntar-lhes o que queriam saber.
-Ah… conta uma história de bicho! — Marô estivera assistindo aos canais de animais selvagens e se interessava muito pelo assunto.
Madu começou a esboçar certo interesse pela situação e me perguntou:
-Nunu, mas eu queria saber… assim, tipo… porque os crocodilos tem essas crostas nas costas?
Sorri ao enxergar cintilando em seu olhar o espírito da curiosidade já tão maltratado no mundo dos adultos. Chamei-as pra mais perto e comecei falando sobre um homem chamado Darwin, e de como ele pensava que os animais desenvolviam características de acordo com o meio no qual viviam. As duas, sentadas com perna de índio na minha frente, prestavam atenção em cada movimento e em cada palavra. Observei as feições inertes quando percebi que haviam começado a imaginar os animais selvagens que eu citava, as florestas, os países e os climas que descrevia. De repente o espaço já estava preenchido e o véu pedagógico escorria pelo vão da porta. Marô se levantou dando pulinhos e animadíssima me interrompeu para perguntar:
-Mas Nunu, então um mendigo que mora na rua pode ter o corpo diferente das pessoas que moram em casas?
Fascinante. Respondi que essas mudanças só acontecem em milênios e que os mendigos são da mesma espécie que nós, e não necessariamente foram mendigos a vida inteira. Eles não desenvolveriam novas características físicas pela sua condição de rua, mas poderiam enxergar o mundo de uma maneira bastante diferente da nossa. Marô já estava elétrica, imaginava em sua cabecinha uma dissidência para cada informação. Enquanto Madu, inclinada, escutava tudo muito séria, quase assombrada com as informações. Esta me perguntou, tímida:
-Às vezes eu fico pensando assim, sabe?… Quem existia antes de eu nascer era a minha mãe, né? Mas antes dela nascer, e antes da vó nascer, e bem bem bem antes de toda a nossa família nascer, bem lá atrás mesmo, quem existia?
Marô deixava cada fluxo de pensamento e imaginação guiar seus pés pela sala e de repente deu um grito e perguntou em alto e bom som:
-Como os mendigos viraram mendigos?! A família deles já era muito pobre bem antes deles nascerem?!
Já tendo incorporado a áurea daquele momento e falando com o mesmo entusiasmo que elas, disparatei a contar que nem sempre a sociedade foi assim como a conhecemos hoje. Houve um tempo onde só existiam dinossauros, outro no qual aqui no Brasil viviam os indígenas, depois vieram os portugueses, depois os africanos escravizados, depois os fugitivos das guerras da Europa. “Esses são os nossos antepassados, meninas.” Falei dos reis e rainhas do velho continente, de como os franceses assassinaram a nobreza, da invenção da máquina de tear, do surgimento das indústrias, da burguesia, do dinheiro, da fome, das classes, da revolução. “E é por isso que os mendigos existem.” Faziam zilhões de perguntas que me levavam a outros países e situações históricas, desde Napoleão até Hitler. Marô me dizia como na escola ela não tinha aprendido nada daquilo. Madu chegou à tese de que na escola a gente não faz conexões com o conhecimento igual estávamos fazendo ali:
-É como se os nossos cérebros tivessem se conectado. Aí o seu cérebro que é mais velho preenche um pouco o nosso. E a gente também pode conectar o nosso cérebro no seu e te passar pensamentos nossos!
Elas me interrompiam com uma expressões horrorizadas, ansiosas para saber o que vinha depois. E eu, como uma sádica, não respondia. Com o mapa do mundo aberto na tela do computador, apontei para a França e perguntei: “O que vocês acham que aconteceu depois que a burguesia matou os reis e começou a reinar?”
Pulando, com as bochechas vermelhas e os olhos viajantes, elas inventavam as próprias histórias sobre o mundo. Me contavam sobre princesas fugitivas, guerras épicas, dragões, castelos e navios. Eu as olhava com reverência, mas por segundos me abatia uma tristeza inoportuna; vinham lampejos delas sentadas, uniformizadas, com o olhar da cor do quadro negro. Após cada história inventada, eu inseria delicadamente a versão oficial. A cada palavra que emanava de minha boca, os olhos das meninas ficava mais dourados. A sala ia esquentando como o ar quente pronto para inflar um balão; o teto da casa de nossa avó parecia querer alçar voo e sair flutuando pela cidadezinha até a estratosfera.
-Mas o que é uma revolução, Nunu?!
Não sabia responder. Então disse a elas para escreverem em um papel a palavra REVOLUÇÃO e a separar em sílabas. “Olhem para a palavra, meninas. O que a sílaba RE lembra a vocês?” Pensativas, responderam que não sabiam. Talvez REVOLTA, ou REGINA. “Sim, perfeito! Revolta é o que?”
-Ah! É quando a gente volta de novo! — Madu disse.
-Sim, é uma volta! — Marô exclamou pulando, consternada com seus pensamentos e mexendo as mãos em movimentos repetitivos no mesmo ritmo deles.
Nunca havia notado isso e tinha dúvidas se estava correto. Mas percebi que estávamos diante da mágica poética da linguagem infantil, e o certo e errado nós já havíamos ultrapassado há muitas horas. Tentei, portanto, dar continuidade ao debate com outra pergunta: “Então, meninas, a revolução é uma volta pra on…” Não pude terminar, pois Madu exclamou:
-Olha Nunu!- ela apontava para o papel e apertava seu dedo com força no escrito- Revolução parece a palavra Evolução! E parece a palavra Ação também!
-Sim!— Marô gritou olhando pra cima e erguendo os braços. — Uma revolução é quando a gente volta pra natureza!
Admito que por um instante me perdi com os rumos do diálogo. Mas as respostas que procurávamos estavam escondidas nas palavras que pronunciávamos. Não precisávamos de escola porque o saber ali não tinha fronteira nem organização humana; era bruto, imoldurável e infinito. Me detive a perguntar para elas: “E como é a natureza?”
-A natureza é livre! É incontrolável! — respondeu Madu, gesticulando com as mãos e abrindo bem os dedinhos.
-A natureza fica sempre se movimentando! — Marô me esclareceu.
Notando o nível de abstração da nossa conversa, minha inevitável adulteza exemplificou: “Na natureza, meninas, quando uma folha cai da árvore ela aduba a terra.”
Marô girava a cabeça em círculos e andava de um lado para o outro. Madu estava vidrada em cada movimentação do meu rosto, mas enxergava muito além dele. Então, de súbito, me deram a seguinte definição de profundidade inestimável:
-Uma revolução é uma ação que faz a gente voltar pra força da natureza que sobrou dentro de cada pessoa.