Pequena Contribuição à Maturação do Leitor
Existiu Patrícia, lá pelas tantas deste século. Ela, no entanto, tivera antecessores de seu caráter em outros séculos e, portanto, haverão sucessores do mesmo arquétipo nos tempos vindouros. Esses serão contemporâneos dos futuros leitores. Eis aí a inquietação para este escrito; alertar-te da existência das Patrícias. Não tendo em mim a perspicácia de ensinar-lhe algo, e apesar do russo Viersílov já haver me contado do caráter invasivo dos conselhos prematuros e salvadores, encasqueto-me em avisá-lo sobre a potencial periculosidade das Patrícias. Registro então, uma advertência aos jovens leitores rousseaunianos. Mesmo que não sejas jovem nem rousseauniano, ofereço-te também esta abstração. Isso porque sei da existência de leitores prosaicos que muitas vezes, já maturados pela vida, acumulam conhecimentos empíricos que, por não conseguiram sistematizar no âmbito das ideias, acabam transformando-os em sabedorias brutas e inúteis, restrita ao íntimo de quem as tem. Meu trabalho aqui será de domínio público. Os desafetos mundanos reservam-nos grandes lições, eis portanto o hábito da fofoca, que nada passa senão da epistemologia mais afetuosa e próxima da grande parte de nossos irmãos de espécie.
Patrícia escolheu viver em certa cidade interiorana. Considerava-se grande para o local, embora pequena para as capitais. Em seu andar, lábios e olhos, desprezava os padeiros, pedreiros, faxineiras e cabelereiras dali. Fazia isso justamente por precisar dessas mesmas figuras para poder sentir-se no direito do ato. Conheci-a pequena, quando passou a frequentar a família. Logo notei que se encontrava ligeiramente deslocada de nossa classe, pois tais intuições sociais são de fácil acesso até mesmo às crianças. Ao crescer, compreendi que ela aspirava obstinadamente o status concedido aos patrões de berço. Estudada, naquela época Patrícia ainda ocupava um bom cargo na única fábrica da cidade. Era sem dúvida, um Betta em seu aquário exíguo.
Eis um hábito curioso e digno de uma Elizabeth II; ia ela, diariamente, à casa dos sogros almoçar. Entrava sorrindo ao meio dia, como que por acaso, para pegar algo que esquecera na véspera ou entregar-lhes algum recado presencialmente. Em casa simples, a visita nunca sai de barriga vazia e caso saia, leva o ressentimento dos corações anfitriões acompanhando-te porta afora. Certo tempo, havia se tornado frequente que ela chegasse na casa dos senhorzinhos pedindo para que lavassem suas roupas e estendesse para secar, pois segundo ela sua máquina de lavar não comportava tantas roupas e não havia espaço em seu apartamento para estende-las. Ela sentava-se na cozinha enquanto meus avós, servilmente, estendiam suas roupas no varal. Quando me dei conta dessas atitudes inescrupulosas e muito bem envernizadas, passei a nutrir ingênua aversão a sua aparente folga de limites no trato social. Ingênua por pensar, naqueles tempos, que se tratava apenas de folga.
Partamos, pois, ao ato epifânico. Tinha eu 20 anos e estava de recesso da faculdade. Alocada, portanto, em casa de meus avós. Com esse retorno à dinâmica caseira, vi-me presa a essas trivialidades sociais do universo familiar e à convivência parentesca. Certo dia dessa época descrita, Patrícia ofereceu-me trabalho. Pensei ser trabalho, porém fez questão de não diferenciar explicitamente a proposta de um favor. Mais tarde entenderia, que o subintendido era crucial para que eu pudesse aceitar a proposta. Iniciante em experiências e jovem idealista, vi na figura familiar de Patrícia a prova de honestidade que supostamente me bastaria naqueles tempos. Naquele dia, trabalhei 8 horas em sua recém montada empresa. (Ah, vale ressaltar para a não muito surpresa do leitor, que Patrícia havia se encontrado na profissão de empreendedora.) No final do dia, percebi que se tratava de um favor. Ela me levou para a casa e disse ao se despedir no carro
-Obrigada querida, você foi muito útil para mim hoje. Tchau, fica com Deus, viu?
Perplexa, entrei em casa e pus-me a refletir. Inicialmente senti raiva de minha pessoa por ter-me posto em situação tão vulnerável e ter sido tão arrogante a ponto de não me dar conta de minha própria ingenuidade. Mamãe sempre me diz: “és ingênua”, respondo brava e soberba: “não me conheces mais há tempos, mamãe.” Sou ingênua, notei agora como num súbito tropeço na sola do próprio sapato. Passada a raiva e notado com objetividade meu lugar de desenvolvimento etário, concluí que não poderia me martirizar por ter uma atitude ingênua aos 20 anos: “É vivendo que se aprende, tola. De que adiante ler as desventuras de Arkadi Makárovitch Dolgorúki com a esperança de se adiantar ao tempo, debruçar-se em estudos superiores, doutores e tantos senhores respeitáveis e ainda sim ter menos de 10 anos de vida consciente? És boba, e isso fica visível em seu rosto pueril. Há em nós dois relógios; o natural e o cultural. O primeiro anda arrítmico em relação ao segundo, tal qual os ponteiros de segundos e minutos dos relógios analógicos. Tu adiantas do cultural na esperança de que o natural o siga, no entanto o ritmo da natureza não cede às pressões humanas. A natureza é o limite da vida; nem mesmo as revoluções industriais conseguiram alterar seu ritmo. Quem tu pensas que és para que o faças? Talvez sejas tola justamente por ter 20 anos e não saberes olhar um relógio analógico e ler as horas com agilidade.”
Avisos não me faltaram para enxergar a ética enviesada do pequeno burguês; de Machado a Tolstói, todos me alertaram. Eis que surge debaixo de meu nariz, Patrícia. Dona de um desprezo absoluto pela verdade. Busca através do conhecimento o status dito superior na sociedade; reduz o estudo à burocracia e à pobreza do funcionalismo. Agora, o leitor atento deve estar se perguntando; “qual a tão suntuosa relação entre a miséria intelectual da classe média com o hábito de tirar vantagem dos outros?” Dostoiévski escreve que não se deve julgar os outros por “não se saber sofrer”, e que para vir a ser juiz dos outros é preciso conquistar pelo sofrimento o direito de julgar. Tendo explicitado anteriormente meu sofrimento, passo, portanto, ao julgamento. E se tu fores me julgar por julgar, tome a advertência do russo antes.
Eis a abstração; pressuponhamos juntos que o trato superficial do conhecimento seja a praxe de ação dos alpinistas sociais. Agora, admitamos que a ética seja uma ramificação do que chamamos de conhecimento, sendo mais especificamente, uma área de reflexão filosófica. Se conhecimento contém ética, e é observável o trato fisiológico das elites e de seus rabeiros dado ao conhecimento, logo também a ética é uma conveniência privada para esse arquétipo com manias de grandeza. As Patrícias são possuidoras de almas encolhidas ao nível das regras inventadas. A submissão às formalidades hierárquicas é feita de bom grado por elas. Não se compreende a ética e o saber como fenômenos, portanto existentes na organicidade social. Pelo contrário, os vê como objeto, valorada unicamente de forma material. Com essa distorção ética, não é surpresa que um traço marcante das Patrícias seja compreender as estruturas dos grupos sociais e utilizar isso em seu favor, mesmo que tenha que se aproveitar da simplicidade de pessoas ou passar por cima delas. A atitude antiética de uma das Patrícias perante a mim, é apenas a ponta do iceberg. Aqui, a ética não é guiada por virtuosismos abstratos. Patrícia vê o saber um quadro estático que ornamenta uma casa, não como uma paisagem natural em movimento, maior que o observador e absolutamente indomável.
No entanto, caro pupilo, conduzo minha advertência para além da simples tomação de nota da existência de Patrícias. Digo-te para que mintas também. Saibas mentir como o pequeno burguês sabe, e não se sinta em nenhum momento moralmente superior a ele. Desfaça em sua mente a idealização que ocasionalmente possa ter em relação a ti mesmo ou aos outros. Mintas e nunca acredites na própria mentira. Assim diferenciarás tu, das Patrícias. Carregues consigo a esperteza e a intransigência da verdade, visto que não serás tu o herói que mudarás os hábitos centenários da classe burguesa; dispa-se de heroísmos juvenis. Assim sobreviverás neste mundo artificial e te manterás integro, verdadeiro e com nobres ideais. Contribua para a mudança, e enquanto isso, saibas adaptar-se ao mundo que lhe é dado. Termino pois meu conselho, com a esperança de chegar-lhes aos olhos essas letras no momento exato de sua vida no qual os ponteiros naturais e culturais estejam alinhados. Só assim, em natural maturação, será possível a absorção dessa contribuição. Caso chegue-te antes, quando o ponteiro cultural está adiantando em relação ao natural ou vice-versa, tenha paciência, meu amigo, pois um dia esse escrito lhe fará sentido.