No Passeio da Urca.

Emanuelle Anastassopoulos
3 min readMay 15, 2022

Por volta do meio-dia estou no ônibus que me levará para o Baixo Botafogo, mas não sem antes dar boas voltas pelo bairro da Urca. No balanço do metal eu caio para outro acento assim que avisto o mar, aqui posso ficar mais próxima dele. Passamos debaixo do grande prédio branco que guarda as memórias da antiga TV Tupi e preserva em sua posição engenhosa o gosto pelo horizonte concreto da Guanabara. De lá ele observa e toma nota de todos os fatos da cidade próxima, como um soldado num forte, saudando os antigos desbravadores das letras que nele costumavam habitar. Daqui posso ver os trabalhadores de fisionomias gastas se lambuzando em um frango assado, sentados na beira da mureta de uniformes azuis que borram minha vista com o movimento do ônibus e quando me dou conta, já é o azul maior do mar que me invade. As crianças riem e os raios de sol refletidos na água se parecem com aquele som doce. Uma senhora de braços gordos, estampada de flores, segurando suas sacolas de feira, pede baixinho para a mocinha apertar o sinal de descida e logo em seguida salta. No alto da esquina posso ver as velas e as ondas desmanchando nas pedras manchadas. Enfeitando a muretinha há um arranjo de flores brancas e amarelas, solto no espaço. As florzinhas têm esse ar de independência melancólica que só se atinge à beira da praia. De repente a sombra das amendoeiras se estende até um rapaz que nos espera no ponto de ônibus e sem pena aos meus olhos de artista, arranca as flores do topo da mureta. Posso ouvir o murmúrio alto delas se misturando ao som do motor, que aumenta conforme o rapazinho as enfia em um saco preto e as deixa repousada em seu colo masculino, mexendo o corpo em ansiedade para descer no ponto final; sem mar.

Já é fim de tarde e saio para me despedir do dia. Caminho até a Urca e a cada passo a luz encolhe, a atinjo já na hora prateada do mar. Passo pela mesma mureta e os trabalhadores azuis não estão mais lá. Sob o luar o mar balança como um lençol secando ao vento e os namorados se lambuzam dentro do cheiro sensual da maresia. Sentada na areia úmida da Praia da Urca, não espero ninguém, meu olhar não procura por nada. Vejo no entanto, com saudade de algo ou alguém, o menininho brincando na onda mole, por vezes sumindo nas águas negras e ressurgindo em gargalhada, correndo fugido aos braços da mãe que o espera ao fundo da praia: “Vem, Caetano!”. Homens atracam um bote, com expressões atentas, sem ainda terem se acostumado ao abraço da terra firme. Falam em língua distante e aqueles rostos longínquos avermelhados pelo sol brasileiro me lembram dos meus amores idos; tudo que tive mas deixei que a correnteza tragasse para ela mesma. Um de meus amantes, homem grande que em breve viajaria para trabalhar em um navio europeu e o qual pude sentir por algumas poucas noites antes de se ir ao mar, me disse uma vez no escuro das suas mãos em minha tez: “é bom que se perca a afeição pelos idosos, assim eles não magoam a quem amam quando partem.”

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Written by Emanuelle Anastassopoulos

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