Melanu, criança.
Ela foi minha primeira amiga. Pequena que era, sozinha também; eu e ela. Aí que amei-a como se fosse minha. Mas isso não era; senão só dela. E como todos, também da terra. Nunca gostei de bonecas; preferia as pelúcias, os livros, e ela. A primeira vez que a vi, era duplamente não minha; era da minha tia. Foi na cidade paulistana, num apartamento. Não era dali, ela. Em verdade, o lugar era grande, mas não a agradava. Eu e ela, antes via e agora vejo mais ainda, éramos muito parecidas. Não sei se foi assim desde o parto, ou tornou-se pela convivência. Sei mesmo que quando a vi, era arredia, nervosa. Estava infeliz nas condições daquele quadrado. Eu também nunca gostei de moradas sem quintal, nem árvores, nem terra. Em São Paulo, tudo sempre me pareceu feio. Já era mocinha quando vi alguma beleza, cultural, é claro, pois nenhuma de natureza.
Presentearam-me dela. Era muito grande para o tamanho das casas das capitais. Acredito que existem seres que não cabem nas tenebrosas arquiteturas das grandes cidades. Dizem que quem nasce perto da terra, do ar, do fogo e da água, não se acostuma a viver na fuligem, vendo os raios de sol, magricelos, aparecerem pelas grades da janela. Era filha do interior, eu e ela. Quando veio pra casa, me mordeu logo na cara. Na época foi ferida doída, hoje; cicatriz, lembrança bonita. O caso aconteceu quando fui abraçá-la, e não estava acostumada com afeto; julgou ser ameaça. Isso também fiz mais tarde, ainda nova ao tentar amar alguém. Como julgá-la?
Nossa infância foi picotada com gostinhos de Minas, São Paulo, e Santa Catarina. A todo lugar que a vida tragava a família, ela também ia. Há algo de constrangedor na convivência de famílias pequenas; falta dinâmica, aventura. Mas ela trazia-nos mais alegria, era mais uma pra gente cuidar. Tinha sua relação própria com cada membro da família; com mamãe, a sujeira; com papai, a súdita; comigo, a confidente. Foi a parte mais doce da minha infância. Menininha, ia ao quintal e brincava como se a cadela fosse a irmã que nunca tive. Contava tudo, conversava com ela. Com as orelhas de bicho, ouvia e dava-me bons conselhos; um verdadeiro oráculo cheio de pelos. Contei à ela quando me apaixonei pela primeira vez. “Melanu, ainda és nova. Amor é coisa de outro mundo. Nesse, ainda existe capengando. É difícil amar seres machucados por esse planeta pesaroso.” Teve uns tempos, pouco antes da menarca, que eu estava sempre triste. Aí que deitava em sua gorda, quentinha barriga e era sempre muito bem acolhida. Lá, ouvia dentro dela as vísceras de cachorro, os vermes, as comidas todas. Como podia? Ser ela aquelas tripas e, não menos, minha melhor amiga?
Fui crescendo, já eram outros tempos. Acontece que muitas vezes já esquecia de passar tanto tempo com ela no quintal. Quando ia, orgulhosa, não me queria; não lambia nem abanava o rabo. Demorava pra me perdoar. Era assim, da mesma forma, quando viajávamos; ela sofria, mal comia! Na volta, estava impecável como se nem tivesse percebido a ida, mas se acostumado e na cabeça dela, nunca tivéssemos existido; não lambia nem abanava o rabo. Rancorosa, eu e ela. Mudávamos de casa, de cidade, de gente, tantas e tantas vezes! Era sempre outra mudança assim, de repente. Muitas amiguinhas ficavam nas cidades passadas, mas ela sempre me acompanhava. Deveria, com isso, já ter percebido que não a tinha, nem a nada. Mas ainda não era a hora exata. Nuns tempos, estava doentinha das patas, ela. Já velhinha, sentia minha falta mais que nunca, mas não mais podia dar-lhe o que merecia. O mundo de fora havia notado meu crescimento, e me chamava. O mundo de dentro, já não me comportava.
No dia que se foi, também eu já estava de partida. Foram tantas idas anteriores, mas nessa, ia sozinha, eu e ela; uma de cada vez. Não havia maneira de levá-la, nem dela levar-me. A última vez que a vi em vida, era manhã, estava indo para a escola e era época de muitas provas, daquelas de 3° ano, daquelas de vestibulanda. Estava deitada no quintal a minha cadelinha, cansada já de existir. Fui lá de mansinho, ajeitei-a, pois sabia de seu pesar ao andar. Dei-lhe remédio, um sorrisinho e um “Tchau, irmã.” Ao chegar da aula, fui estudar e no meio, ouvi ela latir lá fora, me chamando: “Melanu, vem aqui, vem aqui!”. Pensei “Daqui a pouco vou.” Não fui. Mamãe chegou em casa, desceu ao quintal, subiu ao meu quarto e, tremendo, disse-me: “Melanu, ela morreu.” Foi como uma carga elétrica na minha nuca. Todo o ar do espaço secou, pesou. Os objetos ao redor pareciam irreais. Distanciei-me do cenário e meu único elo com o mundo, era aquela morte. Saiu uma lágrima sozinha. Mas ao longo dos anos sairiam muitas outras, ao lembrar-me que a neguei uma despedida. Como se já tivesse naquela manhã mesmo, adiantado, para não ter que fazê-lo, mais dolorido, na hora da morte. Junto a ela, foram-se enfim, meus gostos de moleca. Quando vi seu corpo de cachorro, frio, morto, preferi pensar que era só sono. Olhei-a e ela olhou-me, mexeu um pouquinho o focinho e sussurrou: “Irmã, perdoo-te. Perdoe-me também por essa ida.” Falei a ela: “Obrigada. Estarás para sempre perdoada, mesmo sem dever-me nada.”
Foi enterrada no sítio de um tio meu, no alto de uma montanha, a céu bem, bem aberto. Nunca quis saber aonde, assim tão exatamente. Mas ela queria. Outro dia, já passados vários anos e sendo universitária na cidade grande, voltei ao interior. Fui de visita ao sítio; almoço de domingo. Resolvi então, caminhar sozinha pelo pasto plano, debaixo do céu profundo, em cima daquele quintal verde sem fim, que parecia mais ser o mundo todo naquele momento. Passei pela curva superior esquerda da plantação de capim, numa parte muito alta onde via ao longe os montes pelados e junto com eles, ia meu pensar. Aí ouvi uivando a brisa campesina: “Melanu! Estás linda, crescida!” Sorri, criança.