Jacinda

Emanuelle Anastassopoulos
6 min readAug 12, 2020
José Maria de Medeiros (1849–1925)
José Maria de Medeiros (1849–1925)

Isso foi há muitos anos brasileiros, bem no fundo do mato verde dourado, onde a lua pariu Jacinda, cunhã brilhante. Nasceu numa aldeia de gente brava, resistente. Sua mãe era a lua cheia, seu pai um curandeiro de sabedoria soturna e coração valente; bugre guerreiro que um dia sumiu em batalha contra os fazendeiros. Foi nesse dia também, que os brancos roubaram a guria pra levar pra trabalhar na fazenda.

Era ainda nova quando já cobiçada por olhos de homens; espiavam redondos por dentre as tábuas dos celeiros a moça catar capim, fogueavam nas missas quando ia ela bem bordada rezar pra Santo Antônio. Mulher trabalhava e paria. Se não, pra que existia? Nas noites de São João lá da fazenda, ela brilhava de doer a retina, toda enfeitada de noiva. Sob o céu brilhante de junho, ela era mais ela, mais bela do que a lua gorda, mais mágica que as fagulhas do fogarel sagrado de festa de santo. Só que tinha um caboclo no canavial chamado Jurandir. O olho dele arregalava mais que dos outros, pra Jacinda. Era mais que desejo que tinha ali naquela vista, quando ela passava. E na sua cabeça de bicho macho, ficava avistando a presa de longe, armando que ia catar ela e comer um dia, por que já estava madura e tinha que alimentar os homens, supunha.

Toda vez passava a ciganada na estrada da fazenda, quando era mais ou menos agosto. Jacinda adorava espiar os ciganos e fazia amizades profundas e rápidas com as ciganas. Ela via naquele misticismo a liberdade, a sabedoria e a única epistemologia a ela acessível, além da bíblia. O grupo cigano, por sua vez, vivia de pequenos furtos e desses centavos que cobravam pelas cartas e pela linguagem das mãos. Cobravam pouco pois luz a gente dá sob a medida da matéria. Num desses agostos, uma cigana já bem curtida leu a mãozinha da Jacinda. Com seus três olhos de vidro formando uma pirâmide encrustada na parte superior do rosto, olhou curiosa para a mão da menina:

-Tens o destino forte, tá marcado fundo bem no meio da palma. Aqui, ó. Só cuidado com a paixão, pequena. Isso ainda não é assunto pra humano.

Toda vez que eles chegavam, o coração dela já se sentia mais em casa só de olhar as carroças abarrotadas de objetos e especiarias vindas de outros mundos, de outras galáxias, do fundo do mar, roubadas de princesas alvas, europeias. Porque a casa dela, ela via sem porteira, e era o mundo inteiro; a extensão do azul ao chão. Teve uma manhã que os ciganos, já de partida, foram roubar roupas no varal da fazenda enquanto os senhores dormiam e era um daqueles últimos suspiros gelados e opressivos da noite, quando ela sabe que morrerá em breve e começa a chorar sangue. Jacinda ouviu os compadres chegarem de mansinho pelo aterro e começarem a falar em uma língua mágica, que tinha uma sonoridade milenar. Levantou da caminha e foi dar uma olhada curiosa no que estava acontecendo. Viu os ciganos fazendo a limpa no varal dos senhores e sorriu pra eles, satisfeita. Aquele ato era sentido nela bem no fundo na alma como justo e belo; era grata por aquele povo bárbaro a vingar, mesmo que no mínimo do possível.

Foi quando os ciganos de foram naquele ano que Jurandir ficou endiabrado. O homem falava e pensava na menina noite e dia. Contava mentira pra criadagem toda da fazenda que eles estavam namorando. Jaacinda não queria o moço. Ele chegou a pedir a mão da guria, mas ela olhava naqueles olhos e sentia um rio lamacento de correnteza atordoada, que não dava pra enxergar o fundo, mas sabia que lá tinha bicho perigoso. Pra fora, dizia que achava ele muito narigudo e lhe parecia uma boa justificativa para recusar. Nela, as palavras da cigana sábia ficavam bem altas dentro da cabeça toda vez que queimavam os olhos de Jurandir sobre si, fitando distante.

No dia que ele chegou ao pico de obsessão, ela estava sozinha na charrete voltando no canavial quando o homem saltou de supetão do meio do mato pro meio da estrada e ficou parado na frente do cavalo, aí declamou forte:

-Ou a moça casa com eu, ou não casa nunca mais.

Dentro dela algo estremeceu com o som daquela garganta corpuda. As palavras pareciam carregar uma idade ainda maior que o próprio tempo da Terra. Sentiu-se pequena, mas fingiu não sentir:

-Jurandir, sai da frente que tais assustando o bicho!

Ela bateu a rédea no lombo do cavalo e forçou o homem a dar caminho. Afastado no canto da estrada de terra, lançou um olhar enfeitiçado pra guria. Jacinda sentia pelas costas um medo tão intenso, que infantil. A moça batia com a rédea no cavalinho querendo ir mais rápido e sair dali de pressa. O bicho doído deu uma trotada ligeira e fez a charrete passar com tudo por cima duma pedra maior que as outras. Jacinda rolou do assento pro chão e bateu a cabeça. O sangue da mulher regou aquela terra seca e voltou ao estado gestacional da matéria.

Quando acordou estava na cama de palha e as trabalhadoras que cuidaram dela estavam sentadas ao redor duma mesa de madeira sem toalha, cochichando preocupadas em alguma língua muito antiga. Jacinda não fez barulho ao abrir os olhos, mas as mulheres sabiam que tinha acordado e a olharam. Os olhos de Jacinda agora eram leitosos como a lua cheia. Dentro deles não se via nada senão o reflexo da luz solar que batia nos objetos do mundo e voltava. E quando não tinha sol, não tinha também os olhos. Enlouqueceu, diziam os senhores da fazenda quando a viram. Quando chegava o pôr do sol no campo, gritava dizendo às mulheres que via formigas subindo pelas paredes. Na hora de dormir, ouvia pessoas em vultos que apareciam para ela na hora profunda da madrugada e a contavam segredos capazes de esmagar a consciência humana; indizíveis e inescrutáveis. Depois, quando o sol aparecia de novo, ela se escondida dos humanos, ia ao chiqueiro e comia a lavagem dos porcos com gosto, como se morresse de fome. Lutava pela comida com os animais quando chegavam perto, grunhindo em protesto, apontando os dentes na direção da mulher. Ela rolava na lama e enforcava com as próprias mãos os leitões, um a um, caso insistissem em roubar-lhe a refeição.

Mesmo lunática, ela tinha que continuar a trabalhar. No meio do matagal, ouvia o silêncio do vento e ficava encobrida pela altura do capim; protegida pelo verde. Sob o sol quente, podia ver as ondas densas cintilando pelo ar e sentia que aquele cheiro de poeira com mato fresco era a sensações que a bastava como a última parte prazerosa de sua vida. Lá, as mulheres ficavam ao redor a todo tempo pra evitar de Jurandir se aproximar; ele farejava de longe os momentos de solidão de Jacinda. O homem a queria a qualquer preço. Encasquetou que a amava, enublado com o amor da Terra, achou que se não a tivesse, morreria. E achando, a destruiu. Quando se ama, não há medo da morte? Aí que se destrói a coisa amada; subverte em troço, afim de imortalizar.

Aquele homem havia já tirado tudo da mulher, e queria mais. A saída foi esconde-la; cobrir de vez aquela luz insuportável de Jacinda. Numa madrugada, as mulheres resolveram levá-la pra longe dele. Então, passou por vários manicômios escondidos pelas estradas batidas do interior. Em cada um, era logo examinada por algum homem que bastava olhar pra retina branca que já dizia: “Loucura.” Nos calabouços, após as descargas elétricas recebidas no cérebro, não se lembrava de ser, nem de lugar, nem de como. Os choques, as fezes, as violações, as camisas de força, os cadeados dos portões a faziam viver como se nunca tivesse havido um tempo onde sua mente reconhecera as raízes assentadoras do espírito, e as sedimentara em si. Ela vivia muda, na mais completa solidão; a perdição de qualquer caminho familiar ou minimamente conhecido do mundo real com sua alma. Mas quem é filha do céu e do mato, tem sempre dentro do peito a linguagem da verdade e dela nunca pode ser apartada; nas madrugadas que não conseguia dormir com medo dos enfermeiros entrarem em sua cela, Jacinda olhava a lua e sentia um relampejo em si, assim como se passasse pelo corpo todo e descarregasse pela sola dos pés. A bola de cerâmica, tão elegante e tranquila, existindo na escuridão refletia seus raios brancos no peito da menina e chorava a impotência; “Filha, perdoe esse planeta, não sabem o que fazem.” E Jacinda, sem conseguir racionalizar as palavras em ruído, sentia; “Mãe, por que me abandonaste?”

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