Galinhas Voadoras

Emanuelle Anastassopoulos
5 min readSep 23, 2020

24 de junho de 2020
22 de junho de 2020, morungaba, estado de são paulo.

Nasci no ano 2000. No Brasil do início do século XXI, tudo parecia caminhar. Quem ousaria imaginar que chegaríamos aqui, assim? Fugindo da pandemia e do fascismo, tão mais intensos nos grandes centros urbanos, vim pra casa. Na Morungabinha onde nasci, sempre que chego, vem-me a calma; a deleitosa sensação de que minha luta diária para sobreviver no Rio de Janeiro talvez não seja tão importante ou necessária. Aqui em minha cidade natal, meu medo do futuro desaparece, dia após dia, junto com o sol detrás das montanhas quando a tarde vai chegando ao final.

As ruas pacatas me trouxeram o alívio do tão atordoante barulho de buzinas que sou obrigada a aguentar na cidade da Guanabara, se um dia quiser sair de lá formada. Assim, aproveitando o terreno propício, fui ler; fuçar feito criança no guarda roupas que minha avó ganhou de sua patroa no tempo que era faxineira. Um móvel curiosamente amarelo da cor de um pirulito de caramelo, mas empalhado em rococós que denunciam sua idade. Talvez, ao meu infante olhar, pareça mais açucarado do que é. Não sei dizer. O que tenho certeza, é que achei meus antigos livros, agora abandonados. Perdoem-me! Pro Rio, levei apenas os escritos de racionalidade desenvernizada pela prosa e pela poesia. Meti no maleiro, feito objeto com defeito, os romances nacionais; Drummond, Meireles, Machado, Veríssimo e biografias dos Beatles. Dentre eles, entristecido, imaginei que até um tanto ressentido, estava um livro de contos nacionais. Separei-o como quem não quer nada. Arrogante que sou, ao reencontrá-lo, ainda não dei-me aos seus afagos, sendo que deveria ser ao contrário! Só que o rancor é, sem dúvida, uma característica prioritariamente humana.

Quando o galo cantou, fez frio como costuma fazer aqui no meio das montanhas. Tomando café com a aconchegante companhia de minha avó, soube da chegada do presente de dia das mães que dei à minha: “Mulheres que Correm com Os Lobos.” Percebi, inesperadamente, que minha mente estava rondando a realidade e fazendo-a assemelhar-se ao meu pensar: Livros. Aí que minha avó disse: “Nunu, que livro lindo que você deu pra ela!” Mulher que sou, acostumada a me esconder, quis mais uma vez, retirar-me da luz do gesto, dizendo: “Ah, vó, dei por que queria ler também!” Afinal, não deixa de ser verdade. Porém é claro, a verdade tem camadas; algumas preferimos ocultar, outras iluminar.

Quando o sol esquentou, fomos almoçar. Dentre os gostos tão familiares daquela comida, ocorreu-me uma ideia sem enraizamento imediato. Talvez, tenha surgido lá da terra bem preta alocada no interior metafísico da minha mente e que, de vez em quando, faz brotar uma ou duas sementes. Talvez ainda, tenha essa tal terra, gostado do cheiro do alimento feito com cuidado, e não apenas esparramado nos pratos dos refeitórios universitários: “Vó, por que não pega um livro pra ler?” E a resposta foi como a abertura dessa ferida maltratada que o mundo carrega já há décadas: “A vó não gosta de ler, fia. Até leio alguma coisa da bíblia. Mas aí quando acabo, não lembro nem do começo.” Bateu-me, admito. Bateu-te também, acredito. Aí que eu disse pra ela: “Eu te ajudo, vó. Lemos juntas. Juntas sempre é melhor.” Ali sentada e já almoçada, entusiasmei-me com a ideia. Ficava folheando o livro com o mesmo movimento que se estica uma mola; de trás pra frente, de frente pra trás, a todo momento. A contingência do movimento me foi favorável, pois caí na página 258, onde estava impresso o nome do conto: “Uma Galinha” de Clarice Lispector. Me detive ao título desconhecido e pensei: “Hm, perfeito! Vou começar exatamente por esse. Vai ser um ótimo começo, até já faz sentido prévio, tendo em vista as galinhas deles ali do terreno.”

A luz do dia começou a ficar mais ampla. Aí que fomos nós duas ao pátio. Lá, debaixo do sol de outono, tomou-me a inércia. Há em mim um hábito de anos a fio; maneiras de minha alma, digamos assim; confesso em palavra o que nunca diria em voz alta. Em verdade, senti preguiça de ler com ela e cogitei, vagamente, fingir esquecimento. Como se, lá no fundo, eu soubesse que a ação seria um campo fértil de descobertas para mim e para ela, e o diabinho do meu ombro esquerdo — e acho que deveria ser no direito sua habitação — me conduzisse à falta da situação parteira dessa história. Outra confissão, amigo, faço-te em escrito: desde nova, tenho apurado capricho para as explicações de meus atos. Pensei, é claro, em enganá-la, pois o sol de outono é para mim o melhor e mais gracioso. Por suas chamas representarem o tipo de amor que busco encontrar: calmo, distante, morno. Aliás, ouso ao dizer não mais existir nos tempos atuais.

Devaneios a parte, retornemos à nossa história. Muito embora, seja a mesma coisa. Por um raio de luz angelical vindo incomodamente do meu ombro direito, tive o ímpeto de sair do meu confortável banho de sol e começar a ler com a minha avó. Eu lia até o ponto, ela lia até o outro. Já no início, ela gostou: “Era uma galinha de domingo… há-há! Igual as que eu crio; bem gorda pra dar aquela galinhada!” Algumas horas, ela me olhava com interrogação e timidez, como quem diz: “Ai, não consigo!” Aí que eu tentei explicar a ela, uma vez, o que significava aquela palavra estranha: tepidez. Estava lá, jogada no meio do texto da tal Clarice Lispector da Ucrânia ou do Rio de Janeiro. Tanto faz. Deu-me trabalho. Não foi nem com o google. Pensei: “Pra quê?!” O conto era curto, mas aos olhos meus e dela, parecia enorme. Fomos juntas descobrindo-o, já que nunca o tinha lido. Duas mulheres, de duas gerações. A cada vez que ela compreendia as articulações entre as linhas, me sentia satisfeita como se fosse eu mesma. Pensei e não disse: “Ah, mas como é mágica a vida! Aqui, uma avó minha. Lá, uma aula. Mas como é verdadeiramente belo estudar! Olhar nos olhos das pessoas, e de fato, olhar.” Minha avó quis saber: “Como pôde essa mulher refletir sobre tudo isso; a existência, o ser?” Respondi, em parte bastante ressentida pela tal tepidez: “Ela era rica.”

Na capela da cidade, tocou Ave Maria. O canto preencheu toda a geografia dali. Aí que eu falei: “Porque será que as galinhas não podem voar, vó?” E disse-me ela, com estrelas no olhar: “Hm, acho que é porque a gente come. Se uma soubesse voar, com certeza ensinaria as outras também. “Ao final da resposta, olhei para o lado e vi: Freire, Marx, Platão, Etienne. Em uníssono, perguntaram-me: “Sabes o significado da palavra entusiasmo?” Respondi em pensamento, como me é preferível: “Não.” Pois curvaram-se à mim, e sussurraram: “Inspiração ou possessão por uma entidade divina ou pela presença de Deus.” E abriu-se o portão do pátio, e saíram para a rua. Achei curioso e na hora, acreditei. Pensei: “Abriram o portão! São de fato, em carne, meus irmãos!” Não vi Clarice. Hoje penso que o ressentimento é também atribuição espiritual.

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