Dia das Mães

Emanuelle Anastassopoulos
2 min readNov 22, 2021

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No ano 2000 o mundo acabou. Aquele velho século XX com suas máquinas frias e cinzas e suas histórias de guerra, começaram a se desintegrar. Nasci na aurora de outro tempo, entre o medo da extinção humana e a esperança do início de uma nova época que pensavam seria cheia de comida, casas próprias e universidades. O medo e a novidade andam sempre muito juntos. E assim nasci entre o velho e novo, em uma espécie de tradução de tempos.

Fui sozinha durante toda a vida. Sempre a criança nova em toda cidade que me mudava, sempre a criança de longe em toda escola que passava. Me lembro da primeira vez que me mudei, chorei como se fosse morrer. E morri de fato, pois o nascimento do novo requer a morte do medo. E fui morrendo a cada casa nova, a cada amigo que deixava pra trás, a cada sotaque diferente que conhecia. Me contaram que meu parto foi doloroso, pois eu era muito grande para uma recém nascida. E a amamentação quase não existiu, fui alimentada por uma cabra durante os primeiros anos de vida. Meu primeiro lar foi um sítio na estrada de Itatiba para Morungaba, onde tinham muitos artefatos antigos que meu avô trazia da Grécia. Meu pai uma vez contou que jogou fora uma pequena estátua de Hércules vitorioso em uma Biga, arrastando um monstro, pois achava que era um demônio. Me lembro da presença da poeira e das cortinas de renda branca da janela da cozinha. Da nossa vaca Rainha, preta com manchas brancas, que uma vez morreu caindo num poço. Mas minha memória mais antiga comporta minha avó materna; Regina. Suas mãos me banhando, sempre engrossadas pelo cloro que usava para limpar a casa das patroas. Tão vagamente me lembro de apenas aceitar aquele cuidado.

Quando maiorzinha, o que eu mais gostava era de andar de bicicleta e brincar de fantasias. Eu me vestia de freira, me vestia de animais, me vestia de madame. Adorava imitar os trejeitos que via na televisão. Minha única e sempre constante companhia foi Mel; o cachorro. E me lembro de ama-la tanto e inclui-la em todas as brincadeiras. Os animais eram para mim os seres mais amáveis. Meus filmes preferidos eram os de animais personificados, ou os que envolviam o amor dos humanos pelos cachorros em específico. Como Marley e Eu. Uma vez, era dia das mães. No Sul existe o costume de fazer churrascos com peças de carne e nós fomos almoçar em um restaurante um pouco rústico. Quando chegamos, havia uma leitoa morta com um ferro posto atravessado ao seu corpo, desde a boca até o ânus. Eu tinha 10 anos e entrei em desespero. Comecei a chorar alto e as pessoas começaram a olhar torto para nós. Meu pais não sabiam como me acalmar, nada adiantava. Então chamaram o garçom e pediram para colocar a leitoa em uma sala longe da minha vista, só assim cessou o choro e aceitei continuar no restaurante. Não comi nada.

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Written by Emanuelle Anastassopoulos

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