Crônica para se Reparar.
Hoje assumi minha verdadeira idade. Como se me despojasse para que alguém me adentrasse, tive a súbita consciência de que cheguei a mim. Hoje minhas retinas se afiaram e vieram à tona os fatos escondidos nas dobras do meu corpo, aguardando a chegada de meu espírito para que enfim se expressassem.
Hoje reparei no meu interesse pela velhice de uma lanchonete no Humaitá, que enfeita a esquina da ruela de casa. Tanto minha curiosidade, quanto a própria construção já estavam ali há tempos. Seja bem o tempo o senhor de nossos assuntos. Também ele me atenta a razão ao se mostrar rendido sob meus pés, me sustentando na completa serventia dos cubos mágicos dos paralelepípedos. Barbudo e alvo, cresce nas antigas luminárias e dessa vez me fita de cima, com olhos elétricos e tecnológicos, apesar do corpo gasto.
Reparei na boca dele. Contornada e bela, língua e dentes, pelos e rachaduras. Acontece que com a movimentação da imagem que capto, escapa-me a exatidão da vista e voo para a dimensão do som. Cego. O palco se apaga e uma solitária lâmpada se ascende no mundo. Vejo. Desenhos letrados escorrem com a força das águas e desembocam em minha mente. A silenciosa correnteza redemoinha para o meu interior o entendimento da boca, apesar de seu formato.
Reparei novamente, sem reparar que reparava no meu encantamento pela idade e pela inevitável indiferença dela. Quanto mais gastos os olhos, mais viva a imaginação. Dispenso e desprezo as coisas retilíneas e tal marca me acompanha pela própria biologia. Reparei então em minha condição de poeta e míope; não vejo a linha nítida que delimita a forma. Não rendo o meu olhar à geometria que comporta a vida nos traços morfológicos, pois que é fria e apática. Assim que a linha finita se esvai, o borrão escuro se anuncia e sonho vendo. E é aí que por fim reparo no entorno esfumaçado do fim do trilho, colorido pela ideia dele próprio e desenhado não pela linha externa, mas pela minha própria caneta.