Pequena nota sobre memórias do subsolo.

Emanuelle Anastassopoulos
3 min readJun 26, 2021

Ele, a princípio, se vê superior a ela (Liza). No entanto, sua realidade se contradiz a esta superioridade, existente somente em sua dimensão psicológica. Este fenômeno primeiro é demonstrado através das condições materiais do homem do subsolo, ou seja, o nível de conforto de sua casa, a impossibilidade de comprar um chá caro. Logo em seguida, ocorre a transferência para a dimensão interior da personagem. O homem do subsolo passa a odiá-la a partir do momento em que ela tem contato com sua realidade. Em Liza, se cristaliza a imagem dele, antes vagarosa e imaterial. Ele se envergonha, por isso a odeia. Novamente, ele tenta engrandecer-se perante ela, dessa vez através da violência velada. Ele mostra à ela sua pequenez e, quando ela o acolhe, a sente tão pequena quanto ele. Logo em seguida, sente raiva dela, pelo fato de ter se mostrado vulnerável. Nesse ponto, ele a transforma e a reconhece, psicologicamente, no mesmo patamar de pequenez o qual ele ocupa em seu próprio juízo. Ele, com isso, reconhece nela um ser ainda mais inferior que ele, pois o aceita.

Já em suas reflexões iniciais, o homem do subsolo questiona se seria possível tornar-se algo. Este seria o fim dos que possuem a consciência aguçada:

“Mas que fazer se não tenho sequer maldade? […] O meu rancor, em virtude mais uma vez dessas execráveis leis da consciência, está sujeito a decomposição química. Quando se repara, o objeto volatiza-se, as razões se evaporam, não se encontra o culpado, a ofensa não é mais ofensa, mas fatum, algo semelhante à dor de dentes, da qual ninguém é culpado, e, por conseguinte, resta mais uma vez a mesma saída, isto é, bater no muro, de modo mais doloroso. Assim, desiste-se, por não se ter encontrado a causa primeira. Mas experimenta apaixonar-se cegamente pelo teu sentimento, sem discussão, sem uma causa primeira, repelindo a consciência ao menos durante esse período. Odeia ou ama, apenas para não ficares sentado de braços cruzados. Depois de amanhã, o mais tardar, começarás a odiar-te, porque ludibriaste a ti mesmo, conscientemente. Resultado: uma bolha de sabão e a inércia. Ah, senhores, é possível que me considere um homem inteligente apenas porque, em toda a vida, não pude começar nem acabar coisa alguma. […] Mas que fazer, se a destinação única e direta de todo homem inteligente é apenas a tagarelice, uma intencional transferência do oco para o vazio[…]”

Para o homem do subsolo, Liza representa a realidade, a verdade e o limite dele próprio e consequentemente de seu pensamento. Esta limitação imposta pela figura feminina é a própria limitação do ego masculino (que é infinito), e da consciência racional. Então, o homem se sente no direito, concedido pelo nó neurótico de sua superioridade, de se vingar dela por o ter limitado. Esta limitação passa a ter uma conotação de humilhação para ele, pois o reduz à condição de precisar de acolhimento e de simples existência objetiva. Passa a odiá-la cada vez mais, a ponto de pensar em matá-la. Em Liza, a auto-imagem egóica se cristaliza, pois ele atribui à ela um significado que o ultrapassa. Em Liza, o homem se transforma em algo concreto através da paixão que sente por ela. Ou seja, o amor e o desejo matam e encarnam o itinerário vago e “oco” do pensamento do “homem inteligente”. Mas como poderia, um homem que atribui tanta importância a si próprio e tanta grandeza ao próprio pensamento, se ver atado emocionalmente a outro corpo, considerado inferior a ele por ser feminino?

“É como se as pessoas servissem de marcadores da passagem do tempo. Elas se vão e nós vamos junto a elas. O tempo existe apenas através das pessoas e dos objetos.”

Consiste nisso o processo de surgimento de um símbolo. Ou seja, na atribuição de significado a algo externo. Este significado pode ser individual ou coletivo. Se coletivo, pensamos nas músicas, nas religiões, nas letras e nas figuras públicas. Se individual, pensamos em amigos, familiares e cônjuges. Em ambos os casos, a consciência se cristaliza e se concretiza. Com isso, surge a possibilidade de ressignificação. E com as possibilidades de ressignificação, surge também a transmutação do tempo em trabalho, no sentido mais amplo possível da palavra. O desejo transfere a potência intelectual à limitação da figura humana. A paixão é o cais do pensamento.

“Pensar na pessoa que se ama, é como querer ficar à beira d’água esperando que o riacho alguma hora esbarre de correr” — Maria Bethânia

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Written by Emanuelle Anastassopoulos

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