A Busca pela Identidade Plena e os Limites do Amor Romântico em Milan Kundera

Emanuelle Anastassopoulos
10 min readMar 11, 2022

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Na obra “A Identidade”, publicada pela primeira vez no ano de 1997, o escritor checo-francês Milan Kundera (1929 — atual) explora diferentes perspectivas, tanto no sentido de recursos literários e construção de cenas, quanto no sentido de reflexão filosófica acerca da palavra em um contexto relacional das personagens. A história se passa ao redor da relação romântico-afetiva entre Chantal e Jean-Marc, ela sendo mais velha do que ele. O autor constrói um terreno para que cada personagem possua uma identidade que não é fixa, mas se modifica de acordo com a perspectiva na qual a outra personagem observa a primeira. Ou seja, em cada ângulo, ocorre uma ampliação da significação acerca da identidade do sujeito/personagem. É uma espécie de fragmentação que explana em termos literários o princípio da dissolução da pós-modernidade em relação às compreensões de pretensão universalista sobre o ser humano.

A primeira cena descrita pelo autor que demonstra a intencionalidade conceitual do livro ocorre quando Chantal vai à praia sozinha e Jean-Marc vai ao mesmo lugar com a intenção de procurá-la. Chegando lá, o homem não sabe, mas sua companheira já havia ido embora, e, mesmo assim, ele jura a ter enxergado até que nota seu engano quando percebe que a mulher que julgava ser Chantal era na verdade uma senhora. Dentro da cena o autor explora o olhar particular de cada um, descrevendo primeiro a paisagem pelos olhos de Chantal e logo em seguida pelo olhar de Jean-Marc, de forma que a comparação entre os pontos de vista fica inevitável ao leitor. Além da provocação e da condução guiada pelo autor no sentido de introduzir diferentes perspectivas ao leitor, também observamos que Jean-Marc se sente muito incomodado e reflexivo com o fato de ter confundido o ser amado com outra mulher, se questionando se a diferença entre Chantal e as outras mulheres do mundo, genéricas aos seus olhos, seria tão espaçosa assim. O autor desde então começa a semear o debate acerca da fluidez da identidade dos sujeitos em relação ao outro.

Um aspecto em específico que salta aos olhos é o debate acerca da personagem Chantal ser alguém em casa com seu companheiro Jean-Marc mas, no trabalho, ser outra mulher com uma personalidade distinta. Em uma passagem curta, Chantal diz que poucas vezes pode “ser ela” ao mesmo tempo que exerce sua função profissional. Em determinado ponto, ele a vê junto com suas colegas em uma reunião e não a reconhece, chegando a narrar que os gestos dela não parecem pertencer a ela, e que aparentemente ele perdeu o ser que havia visto no banheiro de casa pela manhã, de forma que desde o instante que a vê, até o momento em que a reconhece tal como a ama, existe um longo caminho a percorrer, como se Chantal possuísse diversas camadas. A categorização de representação é elaborada e debatida pelo sociólogo canadense Erving Goffman, que defende a ideia de que a representação se trataria da absorção de normas e comportamentos sociais que possibilitaria ao indivíduo agir sobre uma fachada e cumprir papéis que lhe são designados socialmente, sob a observância de uma coletividade (Lima & Lima, 2010, p. 205). A ideia romântica de que a verdade acerca da identidade do ser poderia ser visualizada somente através do olhar amoroso se desfaz por ela própria no decorrer do enredo, quando Jean-Marc se questiona se amaria Chantal caso tivesse conhecido primeiro o fragmento dela que se mostra durante o trabalho. Neste ponto da obra, se insere uma crítica do autor a tentativa de paralisia da personalidade do sujeito, que o cristaliza dentro da relação amorosa, com o único intuito de circundar eternamente uma identidade unificada que corresponda ao desejo do outro. Com isso, o autor problematiza o ideal do amor romântico, pois nesse estágio o amor já não existe como critério da verdade acerca de quem os sujeitos da relação são, uma vez que na contemporaneidade própria ideia de verdade universal e moldes unificados é posta em cheque.

No entanto, ocasionalmente, não foi por outra perspectiva, face ou parcela de si que Chantal primeiro se apresentou a ele, senão por aquela mesma que o apaixonou. A fortuidade da perspectiva foi geradora do apaixonamento, como uma espécie de senha ou código que adentrou o homem. Outra cena interessante é a do capítulo 9, que trata o amor dele por ela como um ato de verdade, capaz de dissolver qualquer sentimento escondido ou encenado. Esta talvez seja a única dimensão da vida afetiva e social que supere a fragmentação evocada no restante das páginas, como se o amor dos amantes fosse o único critério da verdade e que o sentimento em questão fosse a autenticidade do ser e do pensamento. Apesar do romantismo e da intimidade existentes como crivo da verdade no interior da relação retratada na obra, Chantal precisa de outros olhares e reclama por isso. O autor compara o corpo da mulher com uma chama se apagando em decorrência da falta de olhares múltiplos. Para Milan Kundera, o amor é um ato de isolamento, o que pressupõe necessariamente uma amplificação do objeto do desejo (a pessoa amada) e a inevitável tentativa de fazê-lo uno dentro da dinâmica relacional na qual está inserido. No entanto, isso não é o suficiente para Chantal; precisa de outros olhares, olhares públicos e não apenas privados. A personagem parece demonstrar a necessidade do sujeito pós-moderno em se fazer múltiplo, de forma que o amor nos moldes do século XVIII e XIX já soa insuficiente, o que reflete e evidencia uma mudança cultural, tendo cultura compreendida no pensamento de Raymond Williams, como forma de resultado e reação humana em pensamento e sentimento à mudança de condições por qual é submetido um indivíduo. Esse resultado, por sua vez, não é unicamente advindo das alterações no modo de produção econômico, mas opera também no interior das relações humanas, em forma de síntese que é gerada e gera simultaneamente novos hábitos coletivos. Nos termos de Bourdieu, podemos notar que ocorre portanto o desenvolvimento de um novo habitus no interior do comportamento prático de Chantal, que infere sobre sua personalidade na mesma medida que em sua relação com o amor. Vale ressaltar que essa alteração comportamental surge na forma de uma nova necessidade que é delimitada pelos marcadores sociais representados nela enquanto uma personagem feminina.

Também nesse sentido, é debatida no livro a concepção moderna de amizade, como uma forma de relação que superaria os obstáculos sociais e existiria em si mesma, tal como o filósofo Montaigne se refere a seu estimado amigo e também pensador Etinne de La Boetie quando perguntado porque o amava: “Parce que c’était lui; parce que c’était moi”. Em outras palavras, a amizade no sentido moderno seria uma espécie de virtude que superaria inclusive o amor romântico em quesito de fidedignidade, uma vez que não se restringiria a apenas uma face do ser, sendo portanto, segundo Milan Kundera, capaz de superar ideologias e interposições sociais diversas. Enquanto o amor romântico demonstra sua fragilidade e denuncia suas intenções narcísicas ao se deparar com a multiplicidade do ser no âmbito social e não conseguir abrangê-lo em sua totalidade diferenciada, o sentimento de amizade é capaz de superar a dimensão unicamente privada do afeto e ser alcançado ética e publicamente pelos envolvidos. Porém, a obra continua o debate sobre o assunto abordando que no advento da era contemporânea, a amizade passa a perder seu valor de lealdade, pois já não se pode prová-la por vias individuais, senão apenas por meio de utilidades materiais e que independem de uma vontade única, uma vez que se subordinam à instituições públicas de caráter coletivo que foram desenvolvidas pelo avanço civilizacional do ocidente. Isso geraria no indivíduo uma falta de amizades ditas verdadeiras e, em compensação, um maior nível de segurança de sua integridade material e psicológica.

Como em um desenrolar factual do pensamento filosófico do autor, no decorrer da trama Jean-Marc passa a enviar cartas anônimas para sua esposa, com a finalidade de poder observá-la por outro ângulo e fazer emergir nela outra faceta, para provar para ele mesmo que ela não é apenas o que representa para ele, mas existe de forma independente ao seu olhar. O que ocorre então é que o homem chega à conclusão de que sua esposa é um simulacro, uma espécie de simulação da realidade ou pequeno nicho privado ao qual ele profere admiração e que apesar disso existe em um ecossistema maior e que por sua vez foge ao seu controle, não mais refletindo ele próprio ou o seu afeto. Chantal então seria a encenação dela mesma, transformando a si própria em uma hiper-realidade que dissimularia em partes sua verdadeira parcela real e que, portanto, Jean-Marc não sabe quem ela integralmente é.

Trata-se pois de um exercício reflexivo de cunho filosófico, no qual Jean-Marc tenta conhecer o ser de Chantal em sua totalidade. No entanto, depara-se com entidades expressas do ser, as quais se condicionam ao tempo e ao espaço e portanto ao movimento que isto as infere e logo transformam-se com o devir. O amor romântico, portanto, em Milan Kundera, exerce a tentativa de abranger o ser, e, no entanto, acaba por se mostrar insuficiente para o êxito de tal pretensão, podendo somente se dobrar ao devir e às expressões do ser em entes, sem necessariamente haver uma unidade lógica alcançável entre eles ao pensamento de quem ama. Embora Chantal de fato seja a mulher pela qual Jean-Marc se apaixonou, ele passa a sentir saudade da esposa mesmo quando ela está presente. Ele sente algo como a angústia de a perder em mãos, visualizando, enquanto ela se encontra ainda ao seu lado, o momento no qual ela passa a não mais ser a si mesma como ele a entende. “Demorar-se oculto no presente: ser ente” é uma passagem da explicação heideggeriana para tratar a diferenciação entre ser e ente. O ser não se transfere integralmente ao ente, mas se expressa nele. Ser e homem são também distintos, na medida em que o homem para Heidegger é somente a sua relação de correspondência com o ser. Com o advento da questão da técnica, todo o universo técnico passa a ser representado como obra somente do homem, sendo que na realidade possui também um ser, que, por sua vez, busca pela planificação e calculabilidade de toda a nossa existência, até mesmo das partes mais subjetivas e íntimas. Nesse sentido, o filósofo caminha para o entendimento que a identidade seria na verdade a união mais intrínseca de ser e homem, adquirindo um caráter historial e implicando um ao outro suas determinações. Tendo isto em mente, surge na obra o sentimento de incompletude e limitação do amor de Jean-Marc por Chantal ao ser posto diante da impossibilidade, desenhada pelo mundo físico, de amar completa, pura e essencialmente como sugere o ideal romântico. Dentro destes termos, a identidade de Chantal não existiria sem a essência do ser do universo técnico historial que a permeia, portanto, a tentativa de Jean-Marc passa por um horizonte inalcançável.

A respeito da teorização acerca do movimento propulsor do pensamento romântico, o Romantismo Alemão, podemos observar seu caráter crítico à revolução francesa e ao iluminismo, de forma que visava a entrega plena e completa às emoções e a negação da frieza, da privacidade e da racionalidade entendidas pelo movimento como impositoras de um mundo que vinha sendo construído na Europa desde o século das luzes. Os românticos buscavam pela integração afetiva e por um conhecimento totalizador, que se encontrava em declínio desde o avanço técnico vivenciado na Europa durante os séculos XVIII e XIX. A técnica é novamente evocada como elemento primordial para a fragmentação do ser. A ideia já comentada anteriormente de que Chantal seria um simulacro é insuportável para uma mente romântica que nega o individualismo e que se contorce em inadequações ao mundo diluído que a técnica propicia. É através da seguinte citação que podemos compreender sinteticamente a incansável perseguição romântica de unidade: “o tornar-se o que verdadeiramente se é, a essência do indivíduo, contrapondo-se ao conservar os papéis e as máscaras socialmente convencionais (Guimarães & Póchno, 2016).” Nesse sentido, Jean-Marc não suporta a compreensão de que Chantal simula a si mesma em diversos ambientes sociais, de forma que a o real acerca da identidade da mulher que ama já não seja mais real do que um mero verniz social. Quando o casal se separa, Chantal evoca o fato de que o apartamento no qual vivem é dela e que o havia adquirido em compra para que sua privacidade não fosse violada. A ideia de propriedade privada é utilizada enquanto intermediação para a garantia da dimensão afetiva e psíquica privada do ser humano, o que remete aos ganhos em delimitação individual ocorridos durante a passagem da era medieval para a era moderna. Aparentemente, imerso em suas emoções e sentimentos apaixonados, Jean-Marc exerce uma tentativa de superação da fragmentação do ser desenhada desde o referido período histórico, e por conta disso, Chantal o abandona. Com efeito, o amor romântico rende-se à determinação histórica e já não encontra espaço para existir livremente. O romantismo exercia em certa medida uma idealização do passado anterior à desmistificação do mundo, e o autor Milan Kundera se vale de recursos e técnicas literárias para debater os rumos das novas formas de afetividade que vêm sendo construídas em nosso tempo. Não sem críticas, podemos notar sobretudo que a existência na era contemporânea é altamente delimitada pela questão de privacidade e individualidade, a tal ponto que o entendimento de amor e amizade que serviu até o século XIX e início do XX já não se encaixa na vida social da atualidade.

Com o debate elaborado acima, podemos notar que a literatura possui a capacidade comunicativa que, tal como as outras formas de expressão artística, amplia o sentido afetivo da linguagem, de forma que passa a comunicar debates teóricos de forma alegórica, construindo, portanto, um caminho mais clarificado e de maiores possibilidade associativas à mente do leitor. Trata-se também de uma forma de incorporação de conceitos e caminhos teóricos abstratos e compreendidos unicamente através da razão, mas que dentro do universo da literatura atingem a dimensão psicológica e podem ser tanto identificados como ressignificados e modificados através da observação crítica da realidade que as cerca e constitui. As palavras todas possuem vida quente.

Referências

GUIMARÃES, A; PRÓCHNO, C; O homem romântico: o homem psicanalítico. São Paulo: Via Atlântica, 2016. n° 29

HEIDEGGER, M; Identidade e Diferença. Petrópolis: Vozes, 2018.

LIMA, S; LIMA, J; O sujeito pós-moderno no debate cultural contemporâneo. Revista de la Universidad Bolivariana, 2010. Volumen 9, nº 27.

KUNDERA, M; A Identidade. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

<O ser e o ente — Empório do Direito (emporiododireito.com.br)> acesso em 09/03/2022

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